Imagine a cena. Um show. Luzes artificiais, calor de gente, mesas cheias de bebida, risos controlados, empresários e políticos num ambiente tão conservador que a moral parece fazer parte da decoração. É aquele tipo de lugar onde todo mundo sabe, sem jamais dizer, o que pode ser falado e o que deve ser apenas entendido. Um espaço onde qualquer frase vira marcador de pertencimento, um sinal para os iguais.
O cantor sobe ao palco e inicia Boate Azul, clássico das madrugadas de bar, onde a bebida não é detalhe. É personagem. A música fala de um homem ferido, que bebe, que procura consolo, que vai atrás de uma mulher na escuridão de uma boate. Tudo dentro de um ritual muito conhecido da masculinidade tradicional. Até que chega o refrão.
No lugar de cantar “Qual o nome daquela mulher?”, ele dispara: “Se era homem ou se era mulher.” A plateia masculina entende imediatamente. Homens riem. Riso curto, riso de código, riso de quem reconhece o recado. As mulheres olham com estranhamento, tentando entender onde, exatamente, está a graça. E nada disso é por acaso. A frase não é inocente. É senha. É código interno da Casa dos Homens.
A piada é transfóbica. E é justamente por isso que ela funciona entre homens. Quando o cantor diz “se era homem ou se era mulher”, ele não está expressando dúvida sexual. Não está falando de bissexualidade. Não está debatendo gênero. Ele está realizando uma operação muito específica.
Ele reconhece que desejou uma mulher trans.
Ele invalida essa mulher como mulher.
Ele a reduz à categoria de “homem” para proteger sua masculinidade diante dos outros homens.
A dúvida não é sobre identidade. A dúvida é instrumento de negação. E a embriaguez, mesmo não sendo mencionada, já está presumida na música. O cenário é de cabaré, de bar, de boate azul, de noite de descontrole.
Nesse cenário, o “se era homem ou se era mulher” tem uma função clara: limpar o desejo, apagar a mulher trans e restaurar o status do homem como “heterossexual legítimo” diante dos outros. Mais do que isso. Ele reafirma o lugar desse homem como sujeito que decide quem é mulher e quem não é. A piada transfóbica opera assim. Ela é mecanismo de defesa. É mecanismo de moralidade. E é mecanismo de hierarquia masculina.
Por que os homens entendem e as mulheres não? Porque a piada não é contada para elas. Ela só faz sentido dentro da Casa dos Homens. Entre homens, existe uma regra silenciosa: desejar uma mulher trans é desejo real. Mas admitir que ela é mulher compromete a masculinidade. Então se invalida a mulher trans para preservar o homem. E o humor entra como ferramenta para mascarar a violência dessa operação.
Por isso os homens riem. Eles identificam o pacto. Eles reconhecem a regra. E as mulheres, de fora da casa, só escutam um ruído.
A bebida é a licença simbólica, não a causa. Ele não precisa cantar “não sei”. O contexto já grita: cabaré, boate, madrugada, bebida, moral laxa, desculpa pronta. Por isso tanto faz dizer: “não sei se era homem ou se era mulher” ou “se era homem ou se era mulher”. Nos dois casos, a mensagem é exatamente a mesma: “Eu desejei. Mas não se preocupem, não foi culpa minha. A estrutura da noite me autoriza a negar.” A dúvida é máscara. A negação é o ato real.
Para o homem bissexual, isso é ainda mais cruel. O homem bissexual vive numa fronteira constantemente policiada. Ele pode validar seu lado heterossexual, porque isso o mantém no grupo. Ele pode se relacionar com mulheres cis ou trans sem ser questionado, desde que mantenha o roteiro oficial. Mas ele não pode assumir seu lado homoafetivo naquele ambiente. Não diante daqueles homens. A piada funciona também como dispositivo disciplinador: “Você pode até sentir, mas aqui dentro só pode existir pela metade.” É a Casa dos Homens dizendo ao homem bissexual que ele só entra se mutilar uma parte de si.
E então entramos, de fato, na Casa dos Homens. A Casa dos Homens não é um lugar físico. É uma estrutura moral, simbólica e afetiva que regula o que um homem pode desejar, o que ele pode admitir, o que ele deve negar, o que vira piada, o que vira vergonha, o que vira silêncio.
E é aqui que entra um ponto central quando pensamos em feminilidade e em mulheres no geral. Não é só que os homens se fiscalizam entre si. É que esse mesmo grupo funciona como um verdadeiro partido das masculinidades que define e valida o feminino. É esse partido informal que decide quem é a mulher “bonita”, quem é “de respeito” quem é “pra casar” quem é “de cabaré” quem é “mulher de verdade” e quem é jogada fora da prateleira do amor. Prateleira do amor é essa vitrine simbólica onde as mulheres são colocadas, avaliadas, classificadas e ranqueadas. Quem organiza essa prateleira, na prática, ainda é o olhar masculino.
Não importa muito a classe social. No bar da periferia ou no camarote caro, na igreja ou na boate, em roda de política ou de futebol, a lógica costuma ser a mesma. Quem valida a mulher como “mulher bonita”, “mulher desejável”, “mulher certa” continua sendo o homem. Quem valida se uma mulher trans será reconhecida como mulher ou rebaixada a “homem” também é o homem. Eu sei que isso soa determinista. Mas na realidade concreta, hoje, quem valida o feminino é majoritariamente o masculino. A Casa dos Homens funciona como um parlamento permanente. O partido das masculinidades é maioria. E é ele que vota, todos os dias, quem sobe ou cai na prateleira do amor, quem é reconhecida como mulher e quem é apagada para que o ego masculino siga intacto.
É fundamental entender uma coisa. Só homens entram plenamente nessa casa. Mulheres não entram. Mulheres cis não entram. Mulheres trans não entram. Homens que não cumprem as regras até conseguem passar pela porta dos fundos, mas sempre vigiados. A casa tem regras que não são escritas, mas são obedecidas por todos que crescem dentro dela. E a principal delas é: quem valida um homem é outro homem. E quem valida uma mulher, também.
Por isso a piada só funciona entre eles. Por isso eles entendem. Por isso eles riem. Por isso eles se reconhecem na frase. E por isso muitas mulheres, de fora dessa casa, acham exagero, invenção ou teoria demais. Não é. A casa existe. O partido das masculinidades existe. E o código também.
Se você é mulher e duvida, faça o teste. Pega este texto. Mostra para um homem, qualquer homem. Não precisa contextualizar. Só pergunta: “É assim que vocês entendem essa frase? Faz sentido para vocês esse tipo de piada?” Observe. Observe o riso involuntário. Observe o incômodo. Observe onde ele tenta suavizar. Observe onde ele confirma. Observe o reconhecimento silencioso. Eles sabem do que estamos falando. Eles conhecem a casa. Eles foram criados nela.
A Casa dos Homens é invisível para quem está de fora, mas absolutamente evidente para quem vive lá dentro. E esse mesmo lugar que organiza o desejo masculino também organiza a validação do feminino.
Entre a Boate Azul e o cabaré simbólico da masculinidade, o refrão mudou e expôs a casa inteira. Não expôs dúvida. Expôs estratégia. Expôs moral. Expôs hierarquia. Expôs transfobia. Expôs o pacto masculino que define e valida quem pode ser reconhecida como mulher e quem é apagada para que esse pacto continue existindo. Expôs a estrutura que mantém homens, mulheres cis e mulheres trans em posições assimétricas. Às vezes, uma mudança de verso ilumina o edifício inteiro. E quando isso acontece, a ficha cai.
Não é sobre música. É sobre quem define e valida quem é mulher e quem precisa ser apagada para que essa definição continue existindo.
Nailton Reis é Neuropsicólogo Clínico com especialização em Neuropsicologia Cognitiva Comportamental, Avaliação Psicológica e Psicologia do Trânsito em Cuiabá-MT
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