A Faixa de Gaza enfrenta “o pior cenário possível de fome” devido à intensificação dos combates e ao deslocamento em massa da população, alertou nesta terça-feira a principal autoridade internacional em crises alimentares em um novo alerta, prevendo “mortes em larga escala” sem ação imediata. A declaração foi feita após a repercussão de imagens de crianças esqueléticas no enclave, com relatos de dezenas de mortes relacionadas à fome após quase 22 meses de guerra.
A pressão internacional levou Israel a anunciar, no fim de semana, medidas como pausas humanitárias diárias nos combates em partes de Gaza e lançamentos aéreos de ajuda. A ONU e palestinos no local dizem que pouco mudou até agora, e multidões desesperadas continuam a interceptar e descarregar caminhões de ajuda antes que cheguem aos destinos. O alerta também afirma que o uso de paraquedas é mais caro, menos eficaz e mais perigoso do que os envios por via terrestre.
A Classificação Integrada de Fases de Segurança Alimentar (IPC, na sigla original em inglês) disse que Gaza está à beira da fome há dois anos, mas que os acontecimentos recentes no território “pioraram dramaticamente” a situação, incluindo “bloqueios cada vez mais rigorosos” impostos por Israel. O alerta da autoridade não incluiu uma declaração formal de fome — uma medida que é rara e exige dados que a falta de acesso e de mobilidade em Gaza tem impedido de serem coletados.
Em maio passado, o consórcio classificou 1,95 milhão de habitantes da Faixa de Gaza (93% da população total) em situação de crise, dos quais 925 mil enfrentavam uma condição de emergência e 244 mil viviam uma catástrofe. O IPC só declarou fome algumas vezes: na Somália em 2011, no Sudão do Sul em 2017 e 2020, e em partes de Darfur Ocidental no Sudão no ano passado. Ainda assim, especialistas independentes ouvidos pela agência americana Associated Press dizem que não precisam de uma declaração oficial para entender o que veem em Gaza:
— Assim como um médico de família pode muitas vezes diagnosticar um paciente que conhece bem pelos sintomas visíveis, sem precisar enviar amostras ao laboratório e esperar pelos resultados, nós também podemos interpretar os sintomas de Gaza. Isso é fome — disse Alex de Waal, diretor executivo da World Peace Foundation.
Uma área é classificada como em estado de fome pelo IPC quando três condições são confirmadas: pelo menos 20% dos lares têm falta extrema de alimentos, ou estão essencialmente passando fome; pelo menos 30% das crianças entre seis meses e 5 anos sofrem de desnutrição aguda ou emagrecimento grave, significando que estão muito abaixo do peso para a altura; e pelo menos duas pessoas ou quatro crianças menores de 5 anos a cada 10 mil morrem diariamente devido à fome ou desnutrição.
O relatório, baseado em informações disponíveis até 25 de julho, afirma que a crise atingiu “um ponto de virada alarmante e mortal”, publicou a AP. Os dados indicam que os limiares de fome foram atingidos no consumo de alimentos na maior parte de Gaza — no nível mais baixo desde o início da guerra, em outubro de 2023 — e para desnutrição aguda na Cidade de Gaza. O texto diz que quase 17 a cada 100 crianças menores de 5 anos na Cidade de Gaza estão em estado de desnutrição aguda.
O premier israelense, Benjamin Netanyahu, tem dito que ninguém está passando fome em Gaza e que Israel forneceu ajuda suficiente ao longo da guerra, “caso contrário, não haveria mais habitantes” no enclave. O Exército de Israel criticou na segunda-feira o que chamou de “falsas alegações de fome deliberada”, e o ministro das Relações Exteriores do Estado judeu, Gideon Saar, rejeitou a pressão internacional por um cessar-fogo, chamando-a de “campanha distorcida”.
Nesta terça-feira, a Holanda declarou persona non grata o ministro das Finanças de Israel, Bezalel Smotrich, do partido ultradireitista Sionismo Religioso, e Itamar Ben Gvir, ministro da Segurança Nacional e líder do partido Poder Judaico. A decisão foi anunciada pelo chanceler holandês, Caspar Veldkamp, em uma carta que menciona a situação humanitária na Faixa de Gaza e diz que os dois “incitaram repetidamente a violência de colonos contra palestinos, promoveram a expansão ilegal de assentamentos e pediram a limpeza étnica em Gaza”.
Na carta, Caspar Veldkamp reforçou o compromisso dos Países Baixos em “aliviar o sofrimento da população em Gaza” e disse que o país está avaliando formas de ampliar a ajuda humanitária. O texto ainda afirma que os lançamentos aéreos de alimentos são “um instrumento de ajuda relativamente caro e arriscado”, e que por isso a Holanda também está tomando medidas para reforçar a assistência por via terrestre.
Após o anúncio das sanções, Ben-Gvir escreveu no X: “Em um lugar onde o terrorismo é tolerado e terroristas são bem-vindos, um ministro judeu de Israel é indesejável. Os terroristas estão livres e os judeus são boicotados”. Bezalel Smotrich também reagiu, afirmando que, “à luz da rendição de seus líderes às mentiras do islamismo radical que está tomando o controle e ao crescente antissemitismo, os judeus não poderão viver com segurança no futuro na Europa”.
Mortes em massa
O alerta do IPC coincide com o momento em que a ONU advertiu contra o uso da fome como arma de guerra e com o aumento da pressão internacional sobre Israel. O relatório destaca que mais de 20 mil crianças foram atendidas por desnutrição aguda entre abril e meados de julho, das quais mais de 3 mil foram identificadas como sofrendo de desnutrição severa. Hospitais relataram um aumento rápido nos óbitos relacionados à fome entre crianças com menos de 5 anos, com pelo menos 16 mortes registradas desde 17 de julho.
“É necessária uma ação imediata e em larga escala para pôr fim às hostilidades e permitir o acesso humanitário sem restrições”, diz o texto. “Não agir agora implicará em mortes em massa em Gaza.”
Desde o início da guerra, a maior parte da população de Gaza — composta antes da guerra por cerca de 2,2 milhões de pessoas — foi deslocada várias vezes. Dezenas de milhares vivem nas ruas ou em barracas improvisadas. Com a destruição da infraestrutura local, o acesso à água e à eletricidade ficou ainda mais difícil, e a entrega de alimentos foi interrompida pelos combates, pela dificuldade de distribuição e pelas restrições impostas pelo governo israelense.
Após o fim do último cessar-fogo, em março, Israel bloqueou completamente a entrada de alimentos, medicamentos, combustível e outros suprimentos por dois meses e meio, alegando pressionar o Hamas a libertar reféns. Sob pressão internacional, o governo flexibilizou parcialmente o bloqueio em maio. Desde então, cerca de 4,5 mil caminhões entraram em Gaza para distribuição pela ONU e outras agências humanitárias. A média diária de 69 veículos, porém, está muito abaixo dos 500 a 600 que a ONU estima como necessários.
Em uma tentativa de reduzir o papel das Nações Unidas, Israel passou a apoiar a Fundação Humanitária de Gaza (GHF, na sigla em inglês), registrada nos EUA, que abriu quatro centros de distribuição em maio. Nesse período, porém, o escritório de direitos humanos da ONU afirma que mais de mil palestinos foram mortos por forças israelenses enquanto tentavam buscar comida, a maioria perto desses locais. A ONU e diversas ONGs se recusam a cooperar com a GHF, alegando que a fundação serve sobretudo a interesses militares israelenses.
Ao rejeitar as alegações de que haja fome em Gaza — contrariando alertas da ONU e de mais de 100 organizações de ajuda humanitária —, Israel com frequência acusa o grupo terrorista Hamas de roubar cargas de alimentos e outros insumos, uma alegação questionada em reportagem do jornal New York Times: segundo a publicação, integrantes do governo afirmam que, até hoje, não foram encontradas evidências de que o grupo armado tenha desviado cargas de ajuda da ONU no enclave.
No ataque de 7 de outubro de 2023, o Hamas matou 1,2 mil pessoas e sequestrou 251. O grupo ainda mantém 50 reféns, mais da metade dos quais Israel acredita que estejam mortos. A ofensiva de retaliação israelense já matou mais de 60 mil palestinos, segundo o Ministério da Saúde de Gaza. O órgão não separa civis de combatentes, mas afirma que mais da metade das vítimas são mulheres e crianças. O ministério atua sob a administração do Hamas, mas a ONU e outras organizações internacionais o consideram a fonte mais confiável de dados de vítimas.
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