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OPINIÃO Sábado, 05 de Novembro de 2022, 08:03 - A | A

Sábado, 05 de Novembro de 2022, 08h:03 - A | A

NEY ALVES DE ARRUDA

Gilberto Mendes e Kubrick

Mendes é um dos pioneiros da chamada música aleatória, concreta e visual

 Ney Alves de Arruda 

Este artigo foi submetido de forma exitosa ao Congresso “Gilberto Mendes e seu rizoma”, realizado remotamente na UFMT em abril de 2022 pelo Grupo de Pesquisa “Contemporarte”. Neste texto, temos então alguns percursos investigativos sobre o compositor brasileiro que deu nome ao evento científico e suas atividades de estudo estético da música fílmica no cinema mundial.

 1) Quem é o compositor Gilberto Mendes? Algumas pinceladas biográficas introdutórias

 As novas gerações de brasileiros desconhecem os grandes feitos de nossos mais relevantes mestres da música. Gilberto Ambrósio Garcia Mendes (1922-2016) nasceu na cidade de Santos (SP) e ingressou no conservatório musical de sua amada cidade aos 18 anos. Foi aluno do célebre compositor nacional Cláudio Santoro na década de 1950. Logo, viajou como bolsista para Darmstadt (Alemanha) para seguir seus estudos musicais com os compositores Pierre Boulez e Karlheinz Stockhausen.

 Mendes é um dos pioneiros da chamada música aleatória, concreta e visual, fundador do Festival de Música Nova em São Paulo (SP). Compositor de vanguarda, teve obras selecionadas pela Tribuna Internacional de Compositores da UNESCO para divulgação em rádios europeias na década de 1970. Grande ativista cultural, Mendes participou do I Encontro de Compositores Eruditos em Brasília (DF) e a I Bienal de Música Erudita Brasileira no Rio de Janeiro (RJ). Ao final da década de 1970 lecionou na Universidade de Wisconsin (USA), além de ter obras executadas no III Festival de Música de América e Espanha em Madrid, Festival de Música de Vanguarda da Fundação Gulbenkian em Lisboa, Lincoln Center International Festival de Nova York.

O trabalho como professor de Gilberto Mendes o destacou como excelente divulgador da cultura na docência de História da Música e Estética em várias escolas importantes de Santos. Inclusive na PUC - Pontífice Universidade Católica de São Paulo e professor do Departamento de Música na Escola de Comunicação e Artes da USP - Universidade de São Paulo. Mendes participou de todas as Bienais de Música Contemporânea Brasileira. Seu ativismo cultural o fez colaborar com os jornais Estado de São Paulo e A Tribuna (de Santos), onde foi divulgado originalmente o artigo objeto fulcral deste trabalho. Gilberto publicou notáveis livros como “Uma odisseia musical” (MARCONDES; DUPRAT, 2000, p.179/180).

 É inegável a expressiva movimentação político-cultural de Gilberto Mendes na década de 1960 que foi um dos autores a firmar o Manifesto Música Nova, publicado na revista Invenção dos poetas concretistas paulistas. Relembra o maestro Júlio Medaglia que Mendes foi: “responsável pelo Festival de Música Nova desde 1962, que se transformou no maior laboratório de experimentação de música no país” (MEDAGLIA, 2008, p. 262/263).

Realmente trata-se de um compositor a ser conhecido, a ser estudado em suas diversas fases de produção artística. O jornalista Irineu Franco Perpetuo escreveu inclusive sobre pontos de mutação desse músico: “a partir de 1982, com o Concerto para piano, Mendes embarcou em nova fase estética, com a progressiva incorporação de elementos da música popular de sua juventude [...] e, principalmente do minimalismo” (PERPETUO, 2018, p. 221).

 Mas quais são as faces estéticas que, por vezes, decorrem da vida íntima de um artista? Somente a pesquisa e a leitura nos podem desvendar as inúmeras visões de um grande mestre. Com inclusão do crítico musical João Marcos Coelho que publicou interessante trabalho relembrando o primeiro livro de ficção lançado por Gilberto Mendes em 2013: “Danielle: em Surdina, Langsam”, uma obra de prosa inspirada estilisticamente em Eça de Queiroz e Machado de Assis, ambos autores de constante leitura do compositor enfocado. Marcos Coelho revelou o gosto de Mendes em sua residência: “Não contem pra ninguém, em casa, Gilberto costuma cantar seus lieder preferidos acompanhado ao piano por sua mulher Eliane. Canções de Schumann, Schubert e sobretudo de Richard Strauss” (COELHO, 2017, p; 335). Veja-se como vivia nesse fragmento de intimidade, o compositor brasileiro.

 2) A direção de cinema perante a sétima arte: o caso Kubrick

 Stanley Kubrick (1928-1999) foi um excepcional diretor fílmico em quem Hollywood apostou. A princípio, timidamente, com filmes que despertavam algum interesse. De forma paulatina se transformou num espetacular captador de polpudos orçamentos, rumo a ser um campeão de bilheteria. Kubrick confiou no chamado cinema autoral, o qual privilegia a direção de arte e o roteiro, que contrasta fortemente como o cinema comercial. A linha estética de produção em Kubrick sempre foi o cinema de risco, isto é, aquele cinema autoral com alto grau de perigo para investimentos pesados de produção e distribuição da indústria  cinematográfica norte-americana.

 O diretor Kubrick lutou muito para conquistar autonomia na hora de bater o martelo e decidir pelo controle autoral, frenando as concessões aos produtores e firmando sua independência autoral. Quando concebeu o filme: O Iluminado (de 1980), este foi recebido historicamente como “um dos maiores filmes de terror do cinema, [que] traz, além de uma atuação ímpar de Jack Nicholson, uma direção de fotografia, som e arte com detalhes que beiram o preciosismo microscópico [...] e um roteiro que fala sobre o medo primitivo” (BALLERINI, 2020, p. 65).

 Apenas treze filmes em quarenta anos de carreira demonstram o cuidado de Kubrick, numa filmografia considerada pessimista e claustrofóbica que tem grandes momentos em filmes como: Glória feita de sangue (1957), Lolita (1962), Dr. Fantástico (1963), 2001: uma odisseia no espaço (1968), Laranja mecânica (1971), Nascido para matar (1987). Versa-se sobre um diretor que privilegiou “o escrúpulo na escolha dos temas, seu método minucioso e a personalidade reclusa criaram expectativa especial a cada novo filme” (BERGAN, 2007, p. 318).

 O Iluminado (The shining), originalmente, é o livro de autoria do aclamado escritor Stephen King, o mestre do terror, que foi adaptado para o cinema e apresenta os efeitos do isolamento pelo emprego, de um dos personagens e sua família, contratado como zelador de um hotel fechado, que vai apresentando distúrbios mentais ao longo da narrativa fílmica, quando há manifestações terríveis e inexplicadas. Kubrick praticamente esgota a equipe cinematográfica e atores com seu perfeccionismo exacerbado para alcançar os resultados que ele almejava. “Para se ter uma ideia, durante as filmagens de O iluminado, a atriz Shelley Duvall teve de refazer a mesma cena mais de cem vezes, até satisfazê-lo” (GARCIA, 2011, p. 175). Eis um pouco do método de produção do cineasta.

 3) O artigo jornalístico de Gilberto Mendes sobre o filme O Iluminado de Kubrick

 Gilberto Mendes foi um cinéfilo que adorava escrever para jornais suas impressões acerca de filmes que assistia. No jornal A Tribuna de Santos publicou um artigo denominado “A iluminada música de Kubrick” na edição de 18 de janeiro de 1981. Inicialmente Mendes proclama de forma solene que o filme O Iluminado não era de terror, mas sim, tratava do sobrenatural. Nesse texto, em poucos parágrafos muito bem tracejados, Mendes demonstra que não é apenas um mestre dos sons, mas igualmente, das palavras. Ele nos transporta suavemente para o mundo fílmico e da trilha sonora incorporada por Stanley: “um diretor de cinema por dentro das intercomunicações semióticas som/imagem em movimento, do natural isomorfismo entre linguagem cinematográfica e linguagem musical” (MENDES, 2013, p. 128).

 Dos compositores utilizados por Kubrick, saliente-se aqueles destacados por Mendes na música do filme versado. Gilberto esclarece não se tratar de música meramente ilustrativa, música de fundo, porque a trilha sonora incorpora o todo cinematográfico, que é música então que libera dados sobre o caráter da obra, numa precisa sincronia de estilos musicais. Mendes ao enunciar os compositores europeus Béla Bartók, György Ligeti e Krzysztof Penderecki, trabalha em seu texto operando com conceitos estéticos maravilhosos como “música tétrica, nosferática”, a saber:

 “Uma música feita de timbres e harmonias de uma dissonância misteriosa, fantasmagórica, de pequenos glissandos lascivos e tenebrosos, percussões diabólicas, sons que parecem ecoar pelas escadarias e pátios de um castelo mal-assombrado, levados por um sopro transilvânico [...] o estranho efeito musical, no entanto, é liberado por uma estrutura musical contrastante [...] composta de harmonias duramente dissonantes tocadas por timbres muito leves de percussões delicadas [...] em meio a gemidos desolados das cordas; subitamente um fortíssimo, que arrepia tudo [...] é pesadamente sinistra, acrescida de todos os procedimentos ruidosos da Neue Musik [Nova Música]. Todo o baixo astral nórdico está presente em sonoridades angustiantes [...] Todo um decadentismo, de morte e desesperança...” (MENDES, 2013, p. 129).

 Impressiona a erudição do artigo jornalístico de Gilberto Mendes. A objetividade em decodificar a arte dos sons para jogos vernaculares argumentativos rápidos e precisos, retratando aqueles sentimentos de pavor que a música encartada no filme O Iluminado de Kubrick nos faz experimentar.

 4) Conclusões

 Por todo o exposto, Gilberto Mendes demonstra ser um autor brasileiro que merece ser estudado e celebrado em seu centenário de nascimento no presente ano de 2022. O compositor erudito membro da vanguarda musical brasileira que soube cooperar e agir em coletividade para instituir um movimento estético legítimo da Música Nova. De igual forma, foi musicólogo e jornalista amante da música de cinema que apresentou essa vertente de uma escrita informativa, competente, leve e inteligente que nos ajuda a compreender e desvelar os mistérios dos sons fílmicos. Mendes é esse imortal mestre multicultural que necessita seguir sendo pesquisado para que as futuras gerações de brasileiros conheçam suas qualidades e virtudes em prol da grandeza da música nacional.

 Referências

 BALLERINI, Franthiesco. História do cinema mundial. São Paulo: Sumus Editorial, 2020.

BERGAN, Ronald. Guia ilustrado Zahar cinema. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007.

COELHO, João Marcos. Pensando as músicas no século XXI. São Paulo: Perspectiva, 2017.

GARCIA, Ana Carolina. A fantástica fábrica de filmes: como Hollywood se tornou a capital mundial do cinema. Rio de Janeiro: Editora SENAC Rio, 2011.

MARCONDES, Marcos; DUPRAT, Régis. Enciclopédia da música brasileira erudita. São Paulo: Art Editora, Publifolha, 2000.

MEDAGLIA, Júlio. Música, maestro! Do canto gregoriano ao sintetizador. São Paulo: Editora Globo, 2008.

MENDES, Gilberto. Música, cinema do som. São Paulo: Perspectiva, 2013.

PERPETUO, Irineu Franco. História concisa da música clássica brasileira. São Paulo: Editora Alameda, 2018.

 Ney Alves de Arruda é professor doutor do Curso de Cinema e Audivisual da UFMT

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