Vivemos tempos em que sentir dor virou um problema existencial. A sociedade, ao invés de lidar com o sofrimento, busca anestesiá-lo. Como explica o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han (2021), vivemos sob o domínio da “sociedade do paliativo” — uma era marcada pela recusa da dor e pela busca compulsiva por conforto emocional. Não se trata apenas de fugir das dores historicamente reconhecidas como desumanas (injustiças, violência sexual,...), mas de toda suspeita de dor.
Nesse cenário, a dor não é mais vista como parte da existência, mas como algo que deve ser anestesiado, ignorado ou rapidamente eliminado. A expressão “paliativo” é uma referência ao tratamento frágil, aquele que tenta aliviar sintomas graves sem lidar com a causa profunda. Da mesma forma, a sociedade contemporânea procura suprimir qualquer incômodo físico, emocional ou existencial, sem enfrentar suas raízes. Nesse sentido, Han diz que vivemos numa sociedade algofóbica (uma angústia generalizada diante da dor).
Essa lógica, como gás, invade todos os espaços da vida: nos vínculos afetivos evitam-se, a qualquer custo, as frustrações; as espiritualidades são cultivadas para se evitar o sofrimento e na política evita-se todo tipo de conflito. Até em conversas de rua discordar de alguém é como dar um “soco" em seu estômago. Esse tipo de dor, ou seja, da decepção, frustração, perda, tem-se tornado um escândalo a ser rapidamente silenciado — inclusive pela pressão social por otimismo constante.
As democracias liberais, por exemplo, têm cada vez mais dificuldade em lidar com o conflito político, com o contraditório e com o dissenso. O ideal de consenso absoluto tornou-se um imperativo, não por busca sincera da verdade, mas por medo de ferir sensibilidades. Esse novo medo desbloqueado gera novos tipos de dores. Quando nos esforçamos desesperadamente para eliminar esses conflitos dolorosos, deixamos de acessar experiências que estruturam a subjetividade humana. Sem isso, sobra apenas o vazio da autorreferência — um "eu" que gira em torno de si mesmo sem profundidade.
Essa política do “não contraditório” é, na verdade, uma forma disfarçada de autoritarismo emocional. Ao evitar o conflito respeitoso, sufoca-se a possibilidade de transformação real (HAN: 2022)e promove a superficialidade e a polarização. Ao negar todo tipo de negatividade, nega-se a profundidade da experiência humana. Ao negarmos a contradição, aniquilamos a possibilidade de reflexão, elemento essencial a política e a transformação social. Portanto, a sociedade paliativa tende a criar bolhas de proteção (nas redes sociais, por exemplo) resultando em polarização excessiva e destrutiva.
Paradoxalmente, ao tentar excluir o contraditório/sofrimento do campo político, acabamos promovendo a ditadura da concórdia. A exigência de consenso se transforma em censura emocional: todos devem concordar, ou serão imediatamente desautorizados (cancelados). Nessa lógica, até a possibilidade de mudar de opinião se torna ameaçadora! Frágeis e débeis, esses espaços não podem suportar a crítica, pois ela carrega um potencial doloroso. É válido lembrar que não é possível uma síntese, sem que tese e antítese se choquem. No entanto, nesse novo espectro é preferível, em razão da possível dor, que se tenha apenas teses sem questionamentos.
A política do tipo paliativo não quer debates, quer apenas consensos. Nesse caminhar, ela não pode ser prudente, pois não tem possibilidade de contradição. As democracias estão enfraquecendo-se não por falta de eleições limpas e honestas, ou por ausência de um sistema de auditoria eficaz, mas por falta de imunidade. E essa imunidade — responsável por manter um corpo político de pé — depende, paradoxalmente, de algum nível de sofrimento. Ao expulsarem toda negatividade do outro polo, elimina-se também a capacidade de defesa do próprio sistema.
Ao tentar eliminar o sofrimento do espaço público, criamos sociedades incapazes de sustentar contradições e diferenças. Mas sem algum conteúdo de dor, não há verdade. E sem verdade, não há política — apenas o teatro do bem-estar.
Eduardo S. Leite - Historiador, Teólogo e Escritor.
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